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Yvy Opata: a terra vai acabar, de Xadalu Tupã Jekupé

No início era tudo abundância e vastidão. O nada era tudo e do nada veio tudo. Do vazio criou-se as montanhas, os campos, as colinas, criou-se a água, as nascentes, os riachos, igarapés, os rios que desaguam no mar, a água grande. As plantas, as árvores, os biomas, os diferentes ecossistemas com seus seres vivos e não vivos, os bichos grandes, pequenos, invisíveis e os seres espirituais que são donos de tudo e cuidam de tudo.

As pessoas surgiram como parte desse todo, as pessoas que sopram palavras, assim como a mata, nhe’ery, sopra vapor e umidade todas as manhãs. O povo Guarani sopra a vida e dá sentido à realidade com suas palavras e rezos, que orientam as relações entre mulheres, homens, crianças, velhos e jovens. Palavras que falam sobre o que está sobre o território e abaixo dele, tudo o que compõe suas camadas e todos os elementos necessários à vida – a terra, a água, o fogo, o céu e o ar, onde as relações humanas e não humanas acontecem.

Quando tudo é criado e a abundância da vida é de todos e para todos, se inicia a arte de viver do povo Guarani, orientada pelo sopro das boas palavras que criam a realidade a partir de seus corpos e território. A língua Guarani faz a leitura da realidade a partir de sua relação com o bioma que cobre a terra onde pisam, onde aprendem, ensinam, rezam, plantam, colhem, subsistem e enterram seus ancestrais. Assim é desde a origem dos tempos.

Dada a invasão colonial e toda a exploração de biomas instaurada no processo histórico que se desenrola até os dias de hoje no Brasil – dos recursos naturais, humanos e culturais – a vida e sua abundância estão sob ameaça.

As águas, a terra e o ar estão contaminados, os alimentos e as pessoas envenenadas, a fauna e flora mortas em grandes extensões. Mas os corpos Guarani se fazem presentes, e junto com eles a resistência de seu povo, de seu modo de ser, viver e agir no mundo.

Na perspectiva da invasão, a terra vai acabar, evidenciam os Guarani. Essa denúncia coletiva é ativada por Xadalu Tupã Jekupé, artista indígena contemporâneo do povo Guarani Mbya, na exposição Yvy Opata: a terra vai acabar, uma das exposições inaugurais realizadas no Museu das Culturas Indígenas em 2022 e que faz parte da construção de um caminho museológico na perspectiva indígena. A obra Mne´ery, doada pelo autor ao MCI, marca o início da formação do acervo do museu.

Obra Mne´ery, doada por Xadalu – Crédito: Daise Strá


Xadalu Tupã Jekupé é artista indígena, cresceu no território guarani na
região do Alegrete (RS) e, em seguida, viveu em Porto Alegre junto à sua
mãe. Por conta da vida em vulnerabilidade nas ruas, ele conhece a arte
urbana e passa a usá-la como ferramenta de luta e denúncia. Com
consciência e compromisso, Xadalu demarca o início dos debates no
Museu das Culturas Indígenas falando sobre as cidades que invadem e
sobrepõem os territórios indígenas, que deveriam estar demarcados.
 
A exposição Yvy Opatá tem curadoria de Sandra Benites do povo Guarani Nhandeva e entusiasta do Museu das Culturas Indígenas – território de trocas interétnicas conquistado através de anos de reivindicações coletivas. Segundo ela, a exposição trouxe ao museu obras que evidenciam a essência do trabalho do artista, comprometido com a luta dos povos indígenas, ao denunciar as violências, o apagamento, a colonização contínua e a sobreposição das cidades sobre os territórios sagrados. 
Durante a exposição, foi estendida sobre a fachada do prédio do MCI uma grande bandeira com a mensagem “Área indígena” e ao entrar na exposição o público se deparava com a frase “Não foi a aldeia que chegou na cidade, foi a cidade que chegou no território indígena”, utilizada pelo autor em diversas obras e contextos.

Os Guarani constituem uma das populações indígenas de maior presença territorial no continente sul-americano, somando cerca de 100 mil pessoas distribuídas em aproximadamente 500 aldeias e/ou comunidades no Brasil, Argentina, Bolívia e Paraguai. Enormes porções de mata desta vasta região já não existem mais, foram ocupadas por plantações de soja e cana, que cerceiam o modo de vida Guarani, que resiste e se mantém vivo através da língua, das práticas religiosas e das tecnologias que aplicam na relação com o meio ambiente. Os Guarani se diferenciam internamente entre si e mantêm suas organizações sociopolíticas e econômica através das especificidades históricas, linguísticas e culturais dos Guarani Mbya, Kaiowá e Nhandeva.
 
No texto de curadoria da exposição, Benites ressalta que Xadalu elabora pontes de comunicação entre a história da sua comunidade Guarani Mbyá e suas obras, que preza por manter os conhecimentos e memórias antes circunscritos à oralidade. A relação respeitosa e o diálogo do artista indígena com os mais velhos e sua comunidade é o que sustenta essas pontes e o autoriza a criar e recriar saberes transmitidos por gerações, que confrontam a visão da história oficial do Brasil e sugere ao público compreender os corpos Guarani como territórios sagrados.
As obras de artes presentes na exposição de Xadalu são corpos que narram seus processos de existências a partir do olhar de quem vive essas narrativas. Na percepção indígena, o território não é um elemento que vive separadamente do corpo, do seu movimento e da sua caminhada. O planeta terra (ywy rupa) é visto como partes do seu corpo, diz Benites.


Crédito: Tatewaki / Revista Pen Japan

Assim como a língua Guarani é uma experiência coletiva entre pessoas que compreendem a palavra, nhe´e, como espírito, uma agência que movimenta as forças do corpo do povo Guarani, que aprende a escutar com o corpo todo, hendu, e não apenas com os ouvidos.

Com o olhar para a realidade atual é preciso reflorestar a visão dos brasileiros e do mundo, diz a curadora, para fazer enxergar o que hoje está invisível sob concreto, ruas, avenidas, fazendas e terra batida, mas que continua a atuar e acionar o modo de vida Guarani que continuam a agir e transformar o mundo através de sua língua, de seus rezos, cantos e palavras, como sementes de afeto e cuidado, especialmente na orientação de crianças e jovens e na integração entre os seres visíveis e invisíveis, que fazem a vida ser o que ela é. Uma sabedoria milenar que sustenta e articula valores e princípios fundamentais acerca do espaço e das relações Guarani, que constituem nhandereko, o modo de vida do povo Guarani.

A curadoria de Sandra traz a perspectiva Guarani de pensar o território em camadas, o chão, os corpos e os pensamentos, e propõe abrir caminhos para os não indígenas adentrarem na forma de pensar dos povos indígenas e suas histórias e criar um entendimento sobre o que é o bem comum sobre a terra que compartilhamos, para garantir o bem-estar de todos.

O material da exposição Yvy Opata: a terra vai acabar, de Xadalu Tupã Jekupé e curadoria de Sandra Benites, estará disponível no site do MCI em setembro deste ano.


Esse boletim foi escrito por Camila Gauditano a partir de conversas e textos de Sandra Benites e Cecília Gobbis, documentalista do Centro de Pesquisa do MCI, assim como de adaptação de trecho extraído do livro Guarani Retã 2008: Povos Guarani na Fronteira. Argentina, Brasil e Paraguai, elaborado em 2008 por inúmeras organizações, entre elas o Centro de Trabalho Indigenista (CTI).

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