Práticas de Salvaguarda do Patrimonial Cultural e Ambiental na Terra Indígena Araribá
O Museu das Culturas Indígenas (MCI) se entende como um museu vivo. Desde a sua criação, valoriza o encontro e as relações interétnicas como alternativas para diminuir as fendas de preconceitos estruturados historicamente, aproximando pessoas de diferentes culturas e visões de mundo, de forma respeitosa.
Nem sempre é assim, já que muitas pessoas que vêm visitar o museu questionam a identidade indígena, seja pelo fenótipo, pela vestimenta ou pela presença indígenas na cidade de São Paulo, que partilham espaços e tempos em comum, realidade decorrente de um processo histórico violento de espoliação de seus territórios, negação à suas línguas, crenças e costumes.
A tentativa de aniquilar e/ou homogeneizar os indígenas à sociedade nacional ao longo dos séculos aprofunda, ainda hoje, a distância entre alteridades, o que reforça a importância do trabalho educativo que o Museu das Culturas Indígenas se propõe a realizar, associado à pesquisa, salvaguarda e difusão dos conhecimentos indígenas.
Diferentemente das iniciativas museológicas tradicionais, o MCI não nasce a partir de um acervo físico, mas de uma gestão compartilhada que garante a presença indígena em seu quadro de funcionamento, movimento necessário de reparação histórica para que os modos de ser e fazer as coisas – que reflete a cosmologia dos povos indígenas – estejam cada vez mais presentes no dia a dia e nas tomadas de decisão da instituição.
Quem está na linha de frente, na relação direta com o público, são os Mestres de Saberes e os estagiários indígenas. Os Mestres de Saberes formam o grupo de educadores do museu, representado pelas etnias Guarani, Wassu Cocal, Xucuru, Pankararu, Karajá e Mehinaku. São eles que realizam a mediação das exposições e, junto aos estagiários, dialogam com o público a partir da realidade e perspectiva de seus povos.
O museu vivo foi nomeado TAVA, que em Guarani significa a Casa de Transformação, nome proposto por Carlos Papa, um dos integrantes do Conselho Aty Mirim, composto por 37 representantes indígenas de 7 povos presentes no estado de São Paulo, e que orienta o caminho de trabalho das equipes do MCI.
Uma das prerrogativas do Conselho, desde sua constituição, é a aproximação das iniciativas da TAVA com os seus territórios de origem, fonte de conhecimentos e memórias, onde a ancestralidade e a contemporaneidade operam de forma intrínseca para que a vida aconteça. Consideram seus territórios como museus a céu aberto em sua essência.
O museu vivo se dá, afinal, a partir do fortalecimento dos territórios indígenas, de suas lutas e inciativas. O Conselho acredita que, para garantir a excelência do trabalho no MCI, é importante que suas equipes conheçam a realidade de seus territórios e comunidades para garantir a aproximação entre as experiências.
Para colocar em prática essa orientação, a equipe multidisciplinar do MCI esteve presente, em setembro deste ano, na Terra Indígena Araribá, na região Centro-Oeste Paulista, para realizar algumas de suas ações. Uma delas, especificamente do Programa de Acervo e Centro de Pesquisa e Referência, foi mapear iniciativas relacionadas à preservação e difusão da memória realizadas por meio das Casas de Memória, Centro de Cultura, Pontos de Cultura, Museus Indígenas e Casas de Rezas – espaços comunitários que contribuem na transmissão de conhecimentos culturais para as novas gerações e para as pessoas não indígenas interessadas em visitar seu território.
Na região Centro-Oeste Paulista há apenas três Terras Indígenas (TI), homologadas em 1991 e localizadas na Bacia Hidrográfica do Rio Tietê: a TI Araribá, TI Vanuíre e TI Icatu.
A TI Araribá foi decretada como terra indígena pelo antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI) em 1913 e foi homologada pela Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) quase 80 anos depois, em 1991. É habitada pelos povos Guarani, Guarani Nhandeva, Terena e Kaingang. A extensão de sua área é de 2 mil hectares, localizada no médio rio Tietê, numa transição entre Mata Atlântica e Cerrado. A população na TI Araribá é de 649 pessoas, segundo o censo do IBGE de 2022. Há quatro aldeias na TI, Kopenoti (Terena e Kaingang), Ekeruá (Terena), Nimuendaju (Guarani Nhandeva) e Tereguá (Terena e Guarani).
Entre 1918 e 1920, a região foi assolada pela gripe espanhola, o que levou a uma baixa populacional do povo Guarani e Guarani Nhandeva. Por volta de 1930, o chefe de posto da aldeia Kopenoti deslocou famílias Terena e Kaingang dos aldeamentos de suas regiões de origem para encorpar e fortalecer a mão de obra de trabalho em Kopenoti. Nesta ocasião, o SPI estava em expansão de suas frentes de contato em todo o país e trouxe famílias adaptadas às novas formas de trabalho impostas nos aldeamentos, como derrubada de madeira, plantação de café, mandioca etc. Assim formou-se a aldeia mais antiga da TI Araribá, a Kopenoti.
Ali, o SPI construiu uma casa de madeira para servir aos seus funcionários, onde a população indígena não tinha acesso e não podia entrar. Na década de 1940, a sede se tornou posto indígena da Funai e atualmente abriga a Casa de Memória Balbino Sebastião Yotó Terenoé, criado em homenagem a uma importante liderança do povo Terena e avô do atual cacique da aldeia, Chicão Terena, que recebeu a equipe do MCI junto a Dário Terena, Conselheiro Aty Mirim, e Regiane Kaingang, auxiliar de enfermagem e Conselheira Estadual de Saúde.
O acervo da Casa de Memória é composto por fotografias históricas e atuais, artesanatos como colares, cerâmicas, maracás, remos, utensílios e símbolos culturais como a ema, elementos que ganham vida a partir da mediação de professores e lideranças que narram histórias do povo Terena e de sua vinda para o estado de São Paulo, já que são originários da região do Chaco (MS), na fronteira entre Paraguai e Brasil. Lá também é possível conhecer a sucessão de caciques da aldeia Kopenoti, os projetos culturais realizados, materiais históricos sobre o contato, livros e fotografias.
Em um espaço que não era permitida a entrada dos indígenas, dentro de seu próprio território, são realizadas hoje, na Casa de Memória, ações educativas para indígenas e não indígenas que contam suas versões da história que perpassam gerações.
Ao lado da Casa de Memória Terena, funciona o posto de saúde, com a atuação de profissionais indígenas e não indígenas e a Escola Estadual Aldeia Kopenoti de Ensino Infantil, Fundamental I e II, Ensino Médio e Educação de Jovens e Adultos (EJA). A Casa de Memória tem conexão direta com a escola e suas atividades educativas. Foi na escola que se formou o grupo de dança Terena, com a participação de jovens e crianças e orientação de professores e anciãos.
Na aldeia Ekeruá, fomos recebidos pelo Cacique Jazone Terena, David Terena, professor e gestor cultural, Mauricio Terena, vice-cacique, Faustino Terena, liderança e artesão, Teresa Terena, coordenadora pedagógica e Alício Terena, vice-diretor da escola. Gerolino Terena, Conselheiro Aty Mirim, estava em atividade fora da aldeia. A aldeia completou 23 anos em agosto deste ano e realizou uma comemoração na comunidade.
No início dos anos 2000, um conjunto de famílias Terena decidiu acompanhar Jazone, antigo cacique da aldeia Kopenoti, para abrir uma nova aldeia na TI Araribá, próxima à estrada. Quando chegaram ao local da nova aldeia, que fica mais ao alto e onde tudo era pasto, decidiram por construí-la a partir da organização social tradicional do povo Terena, dispondo as casas em círculo. Ao longo dos anos foram plantando quintais, construindo casas e restaurando a mata do entorno.
Em setembro deste ano, a comunidade realizou a 7° edição dos Jogos Indígenas na aldeia EKeruá, encontro que reúne quase 500 pessoas de diferentes terras indígenas do estado de São Paulo (Centro-Oeste Paulista, litoral e zona urbana) para competirem em diversas modalidades esportivas e culturais, como arremesso de lança, arco e flecha, zarabatana, futebol de campo e areia, cabo de força, corrida de tora, jogo de disco etc. São momentos de encontros, diálogos, fortalecimento das culturas e identidades indígenas, venda de artesanato, troca de sementes e desfile de belezas indígena. O evento entrou para o calendário do município de Avaí, através de um decreto municipal, que garante parte do orçamento para a atividade. A proposta da comunidade é aproveitar o encontro para discutir temáticas em comum aos territórios. Na edição do ano passado, conversaram sobre Educação Indígena Diferenciada.
Ao longo dos últimos anos, professores e jovens da Aldeia Ekeruá têm desenvolvido um programa de turismo comunitário para receber crianças, jovens e professores não indígenas em visitas mediadas. Hoje o programa de visitação consegue oferecer roteiros temáticos variados e cada escola ou instituição pode escolher o eixo que mais se aproxima de seus interesses. Todo trabalho de mediação é realizado por jovens da aldeia de forma voluntária, o programa não possui subsídio e até o início deste ano era gratuito para todos os públicos. Hoje, um valor simbólico é cobrado para cada pessoa, o que arca os custos necessários de manutenção dos espaços coletivos. Mais do que qualquer recurso, a comunidade entende a importância do trabalho que realizam como fortalecimento da identidade e da noção de pertencimento através da transmissão cultural.
Dependendo do roteiro escolhido, realizam atividades culturais como a dança do bate pau, jogos e brincadeiras indígenas, oficinas de artesanato, culinária tradicional, atividades de artes e grafismos – nas quais revivem e ensinam as prerrogativas dos clãs Terena – além de roteiros ambientais, como o circuito do peixe e etnobotânica, saberes indígenas e língua materna. Os professores da aldeia procuram manter um diálogo constante com professores e escolas não indígenas, assim como com universidades da região. Foi realizado na aldeia Ekeruá, por exemplo, a observação da constelação da Ema, símbolo importante para o povo Terena, através de equipamentos de última geração com a orientação dos professores e alunos do Curso de Astronomia da Unesp.
Ao chegarmos na aldeia Nimuendaju, fomos recebidos por Creiles, ex-conselheira do Aty Mirim e vice-diretora da Escola Estadual Nimuendaju, de Ensino Infantil, Fundamental I e II e Ensino Médio, que conta hoje com 14 professores. Estava à nossa espera, junto com Ronivaldo, que ocupa atualmente o espaço de representação do território no Conselho Aty Mirim. Juntos, levaram a equipe do MCI ao Centro Cultural da aldeia.
O trajeto foi realizado por um pequeno vagão tracionado por um trator, para os visitantes apreciarem o trajeto e a vista até chegar ao centro cultural, próximo ao rio Araribá, onde a mata ciliar ainda está preservada. A comunidade montou uma estrutura bem bonita para conduzir a trilha pela mata, toda de madeira, pintada da cor amarela, vermelha e preta, com elementos de grafismos do povo Guarani. Uma ponte suspensa passa sobre o rio Araribá e culmina em dois espaços abertos no meio da mata. Importante destacar que, nesse ponto do trajeto, o rio, que antes tinha uma profundidade de dois metros, hoje encontra-se quase seco, sendo possível ver apenas um lamaçal embaixo da ponte. “Não há mais peixes nesse trecho e não é mais possível tomar banho. Os animais ficaram sem fonte de água, o que afeta a biodiversidade local”, disse Creiles.
O Grupo Manduá estava à nossa espera e fez uma linda apresentação cultural para a equipe do MCI. O grupo de dança e canto tem hoje 56 membros entre crianças, jovens e adultos e um repertório com 25 músicas próprias e duas de Tiago Nhandeva que chamam de canto lembrança. As 30 famílias que vivem hoje na aldeia Nimuendaju são descendentes das seis famílias do povo Guarani Nhandeva que sobreviveram ao processo histórico de colonização e que foram contactados no fundo do rio Batalha pelo SPI por volta de 1910.
Na aldeia Tereguá, fomos recebidos pelo cacique Lauro Terena, sua filha Lilian Eloy, ex-conselheira do Aty Mirim, representante da Arpin Sudeste e coordenadora das mulheres, e Ricardo Castelão, conselheiro do Aty Mirim desde sua constituição, artesão e brigadista. A aldeia tem hoje 49 famílias, que conta com a Escola Indígena Estadual Tereguá, de Ensino Infantil, Fundamental I e II e Ensino Médio. Há dois anos, a comunidade abriu a Associação Tereguá para fortalecer as iniciativas comunitárias, e desenvolvem trabalhos na Casa de Memória Tereguá (atualmente ocupada pela escola durante reforma), considerado um Centro Cultural.
Lá, existem fotografias históricas, desenhos dos alunos, artefatos como saiote de palha, colares e folhetos explicativos sobre as culturas Terena e Guarani.
Nessa ocasião, tivemos oportunidade de conhecer, junto aos nossos anfitriões, a trilha do rio Araribá, com sua mata ciliar preservada e cuidada pela comunidade. Neste percurso estão construindo uma Casa de Rezas e logo adiante há um terreiro onde a comunidade se reúne para dançar e cantar. Próximo à cabeceira, o rio Araribá tem por volta de quatro metros de profundidade, possui peixes e mata ciliar preservada. Porém, em poucos metros, já é possível ver a seca. Os moradores da aldeia destacaram que as plantações de eucalipto do entorno da TI têm drenado as águas do território indígena, já que cada árvore necessita de muitos litros de água para crescer e suas raízes são muito profundas. Diálogos constantes são travados junto às empresas de celulose na região.
Mesmo diante de todo o processo histórico violento pelo qual passaram os povos indígenas na região do Centro-Oeste Paulista, a estrutura social e os princípios cosmológicos dos povos que ali habitam continuam a vigorar e se atualizar diante dos contextos em que vivem. Importante mencionar a presença da Igreja Evangélica e da Congregação Cristã no território desde a época do contato, o que impacta diretamente a transmissão da língua materna, em resgate e perspectivas espirituais. De qualquer maneira, todas as ações desenvolvidas no território estão baseadas no tripé da educação, saúde e cultura, elementos fundamentais para orientar e cuidar das novas gerações que crescem em seus territórios e aprendem a defende-lo, porque reconhecem sua história. Esse é o principal objetivo de todo o trabalho organizado em cada uma das aldeias da TI Araribá: formar crianças e jovens a partir da orientação de quem continua a trajetória cultural de seu povo, com participação, afeto e vínculo para a nova geração manter a luta e os cuidados necessários para seu povo e seu território.
Mais do que mapear iniciativas de memória, o Programa de Acervo e Centro de Pesquisa e Referência do MCI quer dar continuidade ao trabalho junto aos territórios, conselheiros e comunidades, a partir das demandas e necessidades locais, em diálogo com o Plano Museológico do MCI, para viabilizar processos contínuos de interação e criação de práticas museológicas condizentes com as realidades locais, para fortalecer o modo de vida nos territórios e enriquecer a experiência do Museu das Culturas Indígenas no que diz respeito à salvaguarda e difusão do patrimônio cultural indígena.
Texto escrito por Camila Gauditano, supervisora do Programa de Acervo e Centro de pesquisa e Referência do Museu das Culturas Indígenas. Informações levantadas a partir de conversas com as pessoas citadas no texto.
Referência:https://terrasindigenas.org.br/