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Direitos de Povos Indígenas – Dimensões para Políticas Relativas a Patrimônios e Acervos

Todo museu, como instituição de interesse público, deve se construir como um espaço cidadão, comprometido com a garantia de direitos de modo transversal às suas atividades e políticas. Isto significa não apenas evitar violações de direitos, mas promover direitos de modo ativo e permanente.

As instituições responsáveis por acervos de memória relativos a povos indígenas, ou do interesse de povos indígenas, têm, assim, a responsabilidade de conhecer os direitos dessa população. Isto se refere tanto a uma perspectiva mais ampla de direitos humanos, quanto às especificidades culturais que afetam as várias dimensões de direitos em jogo no seu cotidiano, como os direitos de personalidade e intelectuais.

O segundo Boletim de Acervo do Museu das Culturas Indígenas aborda esse tema com o objetivo de disponibilizar informação e animar a construção de novas soluções em instituições de memória. As dimensões aqui reunidas são as principais a serem consideradas como fundamentos da construção, tanto da política de acervos, quanto das rotinas das equipes de Acervos, e dos Centros de Referência dos museus.

Direitos dos Povos Indígenas

As principais referências para a garantia de direitos de povos indígenas no Brasil são a Constituição Federal de 1988, a Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho de 1989 – da qual o Brasil é signatário – e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, de 2007.

O capítulo VIII da Constituição Federal, intitulado “Dos Índios”, reconhece a organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, bem como os direitos originários dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam, e obriga a União a “fazer respeitar todos os seus bens” (art. 231). A garantia da vida e da transmissão cultural por meio da proteção das terras indígenas deve ser amparada e fomentada pelo Estado também em suas políticas de educação e cultura, e em particular pelas políticas voltadas ao patrimônio e à memória. O texto constitucional (art. 232) também garante o direito das pessoas e coletividades indígenas de representarem a si próprias em juízo, em defesa de seus direitos e interesses.

A Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989,

“Reconhecendo as aspirações desses povos de assumir o controle de suas próprias instituições e formas de vida e de seu desenvolvimento econômico e de manter e fortalecer suas identidades, línguas e religiões no âmbito dos Estados nos quais vivem”

estipula uma série de princípios que garantem aos povos indígenas a autonomia tanto na sua autoidentificação (art. 1º) diante dos Estados nos quais vivem, quanto em participar de modo livre, prévio e informado da construção das políticas ou na resposta a eventos que os afetam positiva ou negativamente (arts. 4º, 6º, 16º). Ela assegura também as oportunidades de educação e formação profissional para pessoas indígenas, respeitando suas especificidades culturais na promoção desses direitos, de modo a “[permitir] às crianças dos povos interessados participar plenamente, e em condições de igualdade, da vida de suas comunidades e da comunidade nacional” (art. 29). Muitos povos indígenas já construíram seus procedimentos de consulta, em alguns casos formalizados em protocolos. Metodologias para a construção de processos de consulta estão disponíveis em bibliografia para referência (cf. GLASS 2019).

A Declaração das Nações Unidas sobre Direitos dos Povos Indígenas, aprovada em 2007, ratificou diferentes reivindicações de povos indígenas em todo o mundo, consolidando um referencial para as práticas dos países membros da ONU. Ali estão reconhecidos, entre outros, o direito à autodeterminação, considerada em todos os âmbitos da sua vida política, social e cultural; ao consentimento livre, prévio e informado com relação a quaisquer medidas legislativas e administrativas tomadas pelos Estados nos quais esses povos vivem; o direito a manterem suas culturas e línguas, inclusive nas condições de suas relações com os Estados; o direito à comunicação, tanto em termos de acesso a meios de comunicação, quanto a constituir seus próprios meios; e o direito à reparação pelo furto de suas propriedades extraídas sem consentimento prévio informado ou em violação a normas tradicionais.

Direitos de povos indígenas: cultura e memória

O artigo 216 da Constituição Federal estipula que:

Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:

I – as formas de expressão;
II – os modos de criar, fazer e viver;
III – as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV – as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;
V – os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

No cotidiano de Museus, e particularmente da gestão de acervos, a perspectiva de cultura imaterial não apenas deve orientar curadorias no sentido da formação de coleções e de sua documentação, mas também a construção de suas práticas de cuidado com coleções e com as pessoas ligadas a essas coleções. Os Principios Éticos para la Salvaguardia del Patrimonio Cultural Inmaterial, publicados pela UNESCO em 2003, observam nesse sentido que

“A salvaguarda do patrimônio cultural imaterial é uma questão de interesse geral para humanidade e, portanto, deve ser realizada por meio da cooperação entre as partes bilateral, sub-regional, regional e internacional. No entanto, nunca devemos dissociar comunidades, grupos e, quando apropriado, indivíduos, de sua própria herança cultural imaterial.” (UNESCO, 2003, p1).

É a partir desta perspectiva que têm se intensificado as discussões e a implementação de processos de restituição de acervos museológicos a seus países e comunidades de origem. O gesto da restituição, no entanto, não é uma solução imediata, pois ele se situa além dos campos técnico e jurídico. Para contemplar as perspectivas políticas e éticas dos envolvidos, e avaliar o melhor destino do objeto e os melhores procedimentos para sua recontextualização, é fundamental o envolvimento de pessoas e coletividades indígenas, profissionais de museus, governo e sociedade civil.

No Brasil, o primeiro caso emblemático de restituição aconteceu em 1987, envolvendo o povo Krahô e o requerimento de posse de um machado que estava em posse do Museu Paulista, que gerou a decisão de retorno do objeto ao seu povo.

Em muitos casos, os itens se encontram em outros países, e até mesmo em outro continente. Na Recomendação referente à proteção e promoção dos museus e coleções, sua diversidade e seu papel da sociedade, publicada pela UNESCO(2015, p. 6), aponta-se que

“Nos casos em que o patrimônio cultural de povos indígenas esteja representado em coleções de museus, os Estados Membros devem tomar as medidas apropriadas para encorajar e facilitar o diálogo e o estabelecimento de relações construtivas entre estes museus e os povos indígenas com respeito à gestão destas coleções e, onde apropriado, ao retorno ou restituição de acordo com as leis e políticas aplicáveis.”

Nos anos 2000, uma exposição realizada em São Paulo por ocasião dos 500 anos da invasão portuguesa exibiu um manto de plumas Tupinambá levado por Maurício de Nassau para a Holanda em 1644, e hoje guardado no Nationalmuseet de Copenhague. Nessa época, o povo Tupinambá de Olivença na Bahia iniciou pedidos de restituição de ao menos um dos mantos que foram levados à Europa durante os séculos XVI e XVII, os quais eram presenteados entre casas reais e hoje são musealizados em diferentes países, e dos quais nenhum ficou preservado no Brasil. Enquanto se avaliam tramitações diplomáticas e questões de preservação de artefatos tão delicados, a artista Glicéria Tupinambá retomou o aprendizado da técnica, construindo um novo manto (link).

O processo de restituição é uma entre outras possibilidades colocadas pela construção de relações continuadas e respeitosas entre Museus – e particularmente de equipes dedicadas a acervos – e as comunidades cujos bens culturais se encontram sob seus cuidados. Essas relações podem e devem se estender para o fomento do patrimônio cultural indígena fora do espaço do Museu. Na Política da UNESCO de colaboração com povos indígenas, de 2021, aponta-se que

“Os povos indígenas devem ser apoiados para criar e disseminar seus bens culturais, serviços e expressões tradicionais em um ambiente justo, de forma a poderem colher seus benefícios no futuro.” (UNESCO,2021, p.26).

As questões aqui levantadas também devem ser consideradas de modo conectado à função educativa dos Museus. Dessa perspectiva, o artigo 210 da Constituição Federal, parágrafo 2º, estipula que “O ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurada às comunidades indígenas também a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem”.

Direitos da pessoa indígena em Museus

Outro campo que atravessa cotidianamente as rotinas e políticas de museus é o dos direitos de personalidade, que incluem o direito da pessoa à sua imagem e sua voz, e os direitos intelectuais. A proteção da pessoa – seu corpo, sua dignidade, e sua liberdade – constitui um pilar do Estado de Direito, e está garantida tanto na Constituição Federal (art. 5º, inciso X) quanto no Código Civil (art. 15), e no Estatuto da Criança e do Adolescente (arts. 3º, 17, e art. 100, inc. V).

No caso de povos e pessoas indígenas, bem como pessoas não brancas ou oriundas de outros grupos vulneráveis, infelizmente esses direitos ainda são pouco resguardados no Brasil. Nas instituições de memória, isso acontece quando encontramos documentações deficientes, quando não francamente desatentas ou hostis, no sentido do reconhecimento das pessoas, coletividades e conhecimentos representados, por exemplo usando descritores genéricos como “homem/mulher indígena”, “costumes tradicionais”, “cantador”, “dançarinos” etc. Estas falhas de documentação redundam na desconsideração do direito da pessoa, o que repercute em violações que atingem principalmente pessoas vulneráveis e não brancas em outros âmbitos da vida social, como o desrespeito a corpos vivos e mortos (violência policial, violência médica, enterramento anônimo etc.), e a apropriação da autonomia em assinar documentos e movimentar dinheiro.

A museóloga Marília Xavier Cury (p. 15) indica que a Lei de Direitos Autorais, de 1998, e o Código Civil, cuja versão mais recente é de 2002, já protegem diferentes dimensões de direitos relevantes para povos indígenas, como a proteção da imagem e da voz, e dos direitos intelectuais. A exigência de autorização de uso de registros fiéis da imagem e da voz (art. 15 do Código Civil) coloca de saída a necessidade de uma interlocução entre a instituição e as pessoas e coletividades representadas. No entanto, é importante atentar para particularidades culturais na própria concepção das relações da voz e da imagem com pessoas e coletivos, que podem exigir políticas e cuidados específicos.

No que diz respeito aos direitos intelectuais entre povos indígenas, vale ressaltar, com Cury (p. 15), que a própria Lei de Direitos Autorais “distancia os conhecimentos técnicos e tradicionais do folclore e do domínio público (art. 45, inciso II), protegendo-os embora na prática a autoria coletiva encontra-se num entrave de entendimento e de aplicação legal e jurídica”. A própria designação de autoria coletiva é uma definição insuficiente, pois variam significativamente, entre os diferentes povos, as modalidades de transmissão, formalização de conhecimentos e expressões, as modalidades de titularidade e especialização, e os modos como estas são reconhecidas e formalizadas em cada cultura.

Estas e muitas outras dimensões de direitos – direito à saúde, direitos ambientais, direitos das mulheres, das pessoas com deficiência – certamente atravessam a construção de políticas junto a povos indígenas, e devem ser pauta entre as equipes de museus, não importando qual a temática de suas coleções. Elas só poderão ser implementadas de modo eficaz mediante a construção de processos pautados na autonomia e na abertura à diversidade cultural, linguística, social e política, e o desenvolvimento de metodologias inovadoras para a transformação das relações nas quais se inscrevem os muitos caminhos pelos quais se formam memórias, patrimônios e acervos.

Referências:

BORGES, Luiz Carlo; BOTELHO, Marília Braz. Museus e restituição patrimonial – entre a coleção e a ética. In: XI Encontro Nacional de Pesquisa em Ciência da Informação Inovação e inclusão social: questões contemporâneas da informação. Disponível em: https://brapci.inf.br/index.php/res/download/178379.

CURY, Marília Xavier (org.). Direitos indígenas no Museu: novos procedimentos para uma nova política: a gestão de acervos em discussão. São Paulo: Secretaria da Cultura, Economia e Indústria Criativas: ACAM Portinari: Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, 2016: Disponível em: https://www.sisemsp.org.br/wp-content/uploads/2013/12/IV_Encontro_Indigenas_Museus.pdf.

GLASS, Verena (org.). Protocolos de consulta prévia e o direito à livre determinação. São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo. CEPEDIS, 2019.

GARZON, Biviany et al. Direito à consulta e consentimento de povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais. São Paulo : Rede de Cooperação Amazônica – RCA ; Washington, DC : Due Process of Law Foundation, 2016, Disponível em 2016-Livro-RCA-DPLf-Direito-a-Consulta-digital.pdf

UNESCO / Centro de Informação das Nações Unidas para o Brasil (UNIC-Rio) / Instituto Socioambiental (ISA). 2008. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas: perguntas e respostas. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000162708

Projeto Um Outro Céu. Universidade de Sussex; Universidade Federal da Bahia (UFBA) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC), Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura), Grupo de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult); Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) – Centro de Artes, Humanidades e Letras (CAHL), Grupo de Pesquisas Memórias, Processos Identitários e Territorialidades no Recôncavo da Bahia (Mito); Universidade do Estado da Bahia (Uneb) – Centro de Pesquisas em Etnicidades, Movimentos Sociais e Educação (Opará).

Legislação:

Constituição Federal – Constituição (planalto.gov.br)

Convenção n° 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais – Convenção 169-1 final.indd (camara.leg.br)

Código Civil L10406compilada (planalto.gov.br)

Estatuto da Criança e do Adolescente  L8069 (planalto.gov.br)

Lei de Direitos Autorais L9610 (planalto.gov.br)

Legislação sobre museus [recurso eletrônico]. – 2. ed. Brasília: Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2013. 159 p. – (Série legislação; n. 108). Disponível em: http://www.sistemademuseus.rs.gov.br/wp-content/midia/Legislacao-sobre-Museus.pdf.

UNESCO. Recomendação Referente à Proteção e Promoção dos Museus e Coleções, sua Diversidade e seu Papel na Sociedade. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000247152. Acesso em 03 fev. 2023

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