Pular para o conteúdo principal

BOLETIM 05

“PROJETO MIRAÇÃO” – Registro de saberes e práticas sagradas e formação para público indígena em saberes tradicionais Huni Kuin e Guarani e em produção audiovisual


“A importância e o objetivo deste projeto são em relação a esse mundo específico, mas também para divulgar para toda a sociedade brasileira como é que está a existência e o cultivo da preservação da própria natureza comunitária, onde estão os nossos territórios indígenas, os projetos desenvolvidos por cada comunidade. Esse é um grande objetivo que estamos trazendo aqui, das nossas próprias medicinas ancestrais. A importância é muito grande para esse povo, em termos de não perder os nossos conhecimentos, mas sim aprimorar, cultivar, incentivar e valorizar e praticar em todos os momentos da nossa vida. Um conhecimento desse não quer dizer pobreza, é um conhecimento de muita antiguidade e que temos muito a ganhar, se assim fizermos juntos.”

Maru Huni Kuin, Mestre de Saberes (MCI-NUTRAS)

A partilha dos saberes tradicionais indígenas vai além de um mero compartilhamento de informações; ela representa uma rica fonte de memória coletiva que abrange aspectos fundamentais da vida, como métodos agrícolas sustentáveis, práticas medicinais ancestrais e tradições educacionais únicas. A valorização desses conhecimentos fortalece as comunidades indígenas e enriquece a sociedade global, oferecendo diferentes perspectivas sobre a interação harmoniosa entre os seres humanos e o meio ambiente.

Sabemos também que a formação audiovisual para jovens indígenas desempenha um papel fundamental na promoção da inclusão, na preservação da diversidade cultural e na amplificação das vozes das comunidades originárias. Ao compartilhar com os jovens indígenas habilidades em produção audiovisual, não apenas capacitamos uma nova geração de contadores de histórias, mas também oferecemos uma plataforma para que expressem suas identidades de maneira autêntica. A produção e compartilhamento de narrativas por meio de recursos audiovisuais valorizam tradições ancestrais, desafiam estereótipos e promovem uma compreensão mais profunda das culturas indígenas. Em um contexto comunitário, é uma estratégia privilegiada de elaboração de discursos e conteúdos de modo partilhado que pode ter desdobramentos incalculáveis na divulgação das produções para públicos amplos do Museu das Culturas Indígenas.

Chegada de participantes de Mongaguá/SP

Pensando nisso, organizamos uma atividade formativa realizada integralmente na comunidade indígena guarani Rio Silveira, conciliando a partilha de saberes de mestres indígenas Huni Kuin e Mbya com a formação em audiovisual, trazendo a reflexão e a experiência do olhar, da escuta e da construção de narrativas como algo que une universos dos saberes tradicionais, que são científicos, xamânicos, conceituais, contemporâneos e amadurecidos ao longo dos séculos, e de práticas educativas em diálogo com a sociedade em geral.

A atividade cumpre uma missão fundamental do Museu das Culturas Indígenas, no sentido de visibilizar os povos indígenas por meio de ações educativas e formativas que promovem a discussão sobre suas histórias, lutas, saberes e produções, destacando suas vozes e proporcionando uma compreensão da diversidade das comunidades indígenas no Brasil. Além disso, busca-se atender às demandas indígenas, criando espaços para encontros coletivos, veiculação de histórias, práticas educativas e compartilhamento de memória. Através dessas formações, cumprimos uma das nossas metas mais preciosas, que é a de integrar o Museu das Culturas Indígenas e os territórios, ativando modos locais e valorizando a diversidade cultural.

A transmissão e registro de saberes desempenha um papel crucial na proteção, preservação e perpetuação dos patrimônios imateriais indígenas, abrangendo conteúdos e modos de fazer, saber e ensinar, por meio da transmissão intergeracional de conhecimentos tradicionais. Além disso, a transmissão e registro de saberes contribuem para a valorização e reconhecimento desses elementos como patrimônio imaterial, promovendo a conscientização sobre a importância da diversidade cultural e incentivando a adoção de políticas de preservação e respeito. Essa atividade não apenas salvaguarda tradições ancestrais, mas também fortalece a autonomia das comunidades indígenas, permitindo que elas desempenhem um papel ativo na gestão e proteção de seu próprio patrimônio cultural.


Momento de colheita das medicinas.

A produção da atividade teve início com reuniões de planejamento didático, quando foram também decididos os processos para os dias que se seguiram. A ida à comunidade contou com atividades de caminhada, reconhecimento do território, identificação e colheita de plantas medicinais em diferentes dias. Foram importantes as acolhidas e trabalhos de cura através de rezos e rituais. O preparo da medicina para cozimento também teve seus rituais de início e fechamento de feitio. Ocorreu o plantio de mudas da planta, que é base para a medicina, para que seu uso possa acontecer outras vezes.

No dia da cerimônia foram realizados banhos com plantas medicinais e envase da medicina. Nos dias após a cerimônia, houveram novas caminhadas, sessão comunitária de cinema e reunião para o compartilhamento de reflexões sobre o processo e avaliação das atividades.

Todas as etapas foram perpassadas por práticas adequadas, com cuidado com os saberes específicos. Igualmente houve cuidado e respeito nas decisões tomadas quanto às filmagens, adotadas em reuniões antes e durante as atividades.

Preparo da medicina.

“Venho passar um pouquinho das informações, dos objetivos e da importância que temos em realizar esses projetos culturais de revitalização aos conhecimentos tradicionais que hoje estão nas comunidades precisando revitalizar. A importância deste encontro é que vai com certeza incentivar muito aos jovens e a própria comunidade em geral naquilo que estão sendo assim despertados, pois muito está deixando de ser feito e estão sendo praticadas coisas que não são boas dentro das nossas tradições. […] E assim, revitalizando com esses encontros, quem tem a ganhar é nosso fortalecimento cultural desde a prática das línguas, da prática das melhores alquimias da música, dos tradicionais grandes rezos, da pesquisa das medicinas e do incentivo de todas as áreas artísticas, culturais que existem dentro de cada povo, nos territórios existentes no Brasil. […] Isso só faz com que o Brasil, as culturas e todos nós ganhemos dentro dessa preservação e do incentivo ao que nunca há de se acabar, que é o conhecimento milenar, que foi passado de pai para filho, de filho para neto, assim sucessivamente.”

Maru Huni Kuin, Mestre de Saberes (MCI-NUTRAS)

“A vez que estivemos lá no Rio Silveira, no final do ano, foi muito importante, porque foi uma conexão realmente com a natureza, ter o trabalho com a medicina, a medicina tradicional do povo Huni Kuin, e foi muito gratificante a importância de a gente ter a conexão com essa floresta, e ter esse momento de conexão mesmo.”

Sônia Ara Mirim, Mestra de Saberes (MCI-NUTRAS)

“[…]A gente precisa falar o que a gente espera da instituição que apoia, que dá suporte, para que entendam mais isso, porque na visão do Guarani, quando alguém dá apoio, apoio para fortalecer a cultura Guarani, ela sempre reflete isso. Por exemplo, quando o jovem está ali presente para fortalecer, para dar suporte em algumas coisas, a liderança fala, agradece espiritualmente, fisicamente, sempre a gente faz isso. Então a instituição tem que estar a par nisso também, sempre tem que ter uma pessoa que sempre fala sobre isso, o que é importante, o que traz, o que faz. Então é isso, precisamos fazer mais essa atividade, encontro de saberes, mas sem seguir à risca um roteiro, só para nós, porque a cultura sempre acontece naturalmente, a convivência sempre acontece naturalmente, quando a gente faz. É naturalmente, isso que a gente precisa fortalecer também, tem que ir ensinando eles. Em vez de a gente ouvir deles, praticar junto com eles. Quando estou indo para atividade, estou indo só para participar mesmo, já não me sinto de fora, não me sinto mais liderança, me sinto como um membro dali, então precisamos disso para fortalecer mais.”

Daniel Kuaray Papa (MCI-COM)

“[…]O sonho é que a gente possa, em parceria com o Museu das Culturas Indígenas, com a Tava, proporcionar mais encontros como esse, não só na Aldeia Rio Silveira. E que a gente possa, em outros territórios também, fazer esses intercâmbios, possibilitar o fortalecimento, a troca, a conexão das medicinas em vários outros territórios, não só sobre as medicinas, mas sobre as narrativas ancestrais, sobre os cantos, sobre a palavra que é sagrada, mas que a gente possa cada vez mais percorrer, que a Tava possa estar dialogando em muitas outras comunidades também.”

Cristine Takuá (Instituto Maracá)

Preparo da medicina.



Notas sobre as medicinas Huni Kuin

Diversos pesquisadores, tais como Daiara Tukano (2021), demonstram como o conhecimento ancestral da Ayahuasca está presente em mais de cem povos indígenas na bacia amazônica, abrangendo países como Brasil, Colômbia, Equador, Bolívia, Guiana e Venezuela. No Brasil, seu uso tradicional é conhecido entre dezenas de povos. As antigas trocas entre esses povos dos troncos linguísticos Arawak, Pano e Tukano podem ser observadas em histórias e cantos cerimoniais, onde a ayahuasca sempre ocupou um papel central nas organizações sociais e diplomacias. Evidências arqueológicas indicam o uso entre povos indígenas por mais de cinco mil anos, e até mesmo oito mil anos. A chegada do Império da Borracha e missionários católicos no século XIX iniciou um genocídio das culturas indígenas ayahuasqueiras. Na ditadura militar no Brasil (1940-1980), religiões ayahuasqueiras estabeleceram dogmas, e populações indígenas sofreram com políticas estatais, incluindo massacres por missões religiosas. Hoje em dia, práticas neopentecostais agressivas buscam a conversão nas terras indígenas, ameaçando os conhecimentos tradicionais e contribuindo para o genocídio contínuo dos povos indígenas. Refletir sobre esses paradigmas é crucial para construir respeito e colaboração entre culturas distintas (Tukano, 2021).

Segundo Isabel Santana de Rose (2010, 2022), na virada dos anos 1990, a Ayahuasca tornou-se parte integrante das comunidades Guarani por meio de diálogos e negociações entre diversos grupos e atores. Um projeto conduzido no final dessa década, liderado pela extensa família de Alcindo e Rosa, que desempenhavam papéis de líderes espirituais e eram membros da Equipe Multidisciplinar de Saúde Indígena (EMSI) na região, visava fortalecer a medicina tradicional e transmitir os conhecimentos xamânicos aos Guarani no sul do Brasil. Financiado pela FUNASA, essa iniciativa resultou na implementação de práticas rituais, incluindo o uso da ayahuasca, em várias aldeias Guarani. Alguns Guarani reivindicam o uso da Ayahuasca como uma parte intrínseca de sua cultura e tradição, argumentando que é um conhecimento transmitido por seus antigos avós. A introdução da Ayahuasca e outras práticas correlatas está alinhada ao conceito de Nhandereko, que simboliza a cultura e a tradição do povo Guarani. Dessa forma, a utilização da Ayahuasca por essas comunidades está profundamente enraizada em práticas tradicionais e na compreensão do Nhandereko, representando uma estratégia de fortalecimento e preservação de sua cultura e tradição (De Rose, 2010, p. 37)

O uso da ayahuasca varia significativamente entre os diversos povos indígenas, sendo que cada comunidade possui suas próprias práticas e tradições relacionadas a essa planta sagrada. A ayahuasca é reconhecida como uma ferramenta espiritual e terapêutica, empregada em rituais de cura, conexão com os espíritos e busca de conhecimento ancestral. Essa diversidade de abordagens ressalta a importância de compreender as diferentes formas como essa substância é integrada nas práticas culturais e espirituais de cada comunidade indígena (De Rose e Okenda, 2021). O Mestre de Saberes Maru Huni Kuin nos explica um pouco das informações básicas da medicina curandeira do povo Huni Kuin, que, como vimos, também é compartilhada por muitos povos:

“Chamamos de três gerações: Shuri Pae, Nixi Pae e Huni Pae, que na língua ocidental tem diversos tipos de nomes, uns chamam de ayahuasca, outros assim sucessivamente vão chamando. Mas eu vou falar um pouco desse nome, dessa palavra ayahuasca. Ayahuasca é o Nixi Pae, que vem da cultura ancestral do povo Huni Kuin. Eu nasci dentro dessa cultura, e hoje sou herdeiro de uma família que sempre praticou, que sempre cultivou, respeitou e valorizou essa medicina ancestral. A inspiração dessa medicina faz com que você tenha um encontro com o seu próprio eu aqui em cima desta terra. Essa sagrada medicina coloca na sua fonte de inspiração tudo aquilo que é de bom. Você tem só a ganhar. Essa medicina não te leva em nenhum lugar para você fazer algo que não deve ser feito, muito pelo contrário, ela é uma fonte de inspiração que fortalece a sua matéria, o seu emocional, o seu espiritual. Ela te protege de diversos tipos de casos de doenças espirituais e materiais, também te previne da ansiedade, da depressão, e também te protege de muitos casos de doença que aparecem na vida humana. Desde a espiritualidade até a materialidade, são fontes de inspiração. Muito bom e eficaz para aqueles que acreditam nessa vida cultural, ancestral e espiritual.”

Maru Huni Kuin, Mestre de Saberes (MCI-NUTRAS)

Escolas Vivas

“Durante o encontro, esse processo todo que nós realizamos de caminhada, de colheita de plantas, do feitio e elaboração de uma medicina ancestral e sagrada, dos rituais que nós realizamos, das histórias contadas, todo esse percurso de alguns dias nos quais a gente ficou junto, é uma prática muito relacionada ao que eu venho chamando de escolas-vivas. Essa atividade faz parte desse processo no qual eu venho incentivando, não só na minha comunidade, mas em outras também, processos de fortalecimento da transmissão de saberes, de acordar as memórias que foram adormecidas por processos muito violentos, coloniais, pela própria escola dentro das nossas comunidades. Que acaba sufocando o modo próprio de transmitir conhecimento.”

Plantio de mudas.

Houve um etnocídio no Brasil. Os saberes foram silenciados, línguas foram silenciadas, conhecimentos ancestrais sobre as plantas, sobre o fazer, sobre o curar. Então, eu vejo que a escola viva, para mim, é uma forma de acordar essas memórias, dar um apoio às comunidades para que voltem a dialogar sobre os seus saberes, voltem a praticar esses modos próprios de transmissão.

O encontro realizado teve uma importância muito grande para o fortalecimento do estudo sobre as plantas medicinais e sobre a espiritualidade, e também a possibilidade de intercâmbio entre os povos, onde nós pudemos, através do diálogo, da contação de histórias, da caminhada nas matas e também da prática, do uso das medicinas, poder compartilhar um pouco desse modo de estudo no qual a gente se coloca num diálogo muito profundo com as plantas que a gente chama de mestras, de professoras, de grandes conhecedoras de transmissão de saberes. Então foi muito importante para nós todos, que pudemos trocar experiências. A partir do diálogo com Carlos Papá, que coordena a Casa de Reza aqui no nosso núcleo, mas que também é uma pessoa que está no estudo da espiritualidade, o coordenador da Escola Viva Guarani também, aqui na nossa comunidade, e do parente Maru, que veio também como pessoa que está atuando no Museu das Culturas Indígenas, mas que também é um conhecedor da cultura Huni Kuin das plantas medicinais. Então foi uma possibilidade muito rica, muito fortalecedora, e muito necessária de que a gente possa continuar praticando e fazendo esses encontros, esses intercâmbios, essas trocas de conhecimento, para o fortalecimento mesmo dessas redes.”

(Cristine Takua – Instituto Maracá)

Referências

TUKANO, Daiara. 2022. “Ayahuasca e os desafios dos conhecimentos indígenas diante da globalização”. Em: Daiara Tukano (site). Disponível em: https://www.daiaratukano.com/post/ayahuasca-e-os-desafios-dos-conhecimentos-ind%C3%ADgenas-diante-da-globaliza%C3%A7%C3%A3o Acesso em: 19 jan. 2024.

ROSE, Isabel Santana de. 2010. Tata endy rekoe – fogo sagrado: encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho. Tese (doutorado) – Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Filosofia e Ciências Humanas, Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Florianópolis.

ROSE, Isabel Santana de; OKENDA, Geraldo Karaí. “Xamanismos guarani e tradução no Encontro de Saberes”. Ilha Revista de Antropologia, Florianópolis, v. 23, n. 3, 2021. DOI: 10.5007/2175-8034.2021.e71416. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/ilha/article/view/71416 . Acesso em: 19 jan. 2024.

BUSCAR

Todos os direitos reservados © Museu das Culturas Indígenas 2023 | Desenvolvido por Inova House 

Integração